Teorizando a distopia da rã coitadinha.

“Acho que o amor é a ausência de engarrafamento”. Elis Regina. [1]

Lendo esta declaração pensei na possibilidade de aplicá-la a todos que estão em busca de um encaixe customizado neste mundo a partir de uma interpretação particular e confortável da realidade. Como é sabido por todos, a ausência daquilo que detesto permite a realização do que me apraz. E a verdade de hoje é: o amor pelo proibido tem se disfarçado de amor verdadeiro, de amores maiores do que aqueles limitados a apenas um assunto ou família. Um amor assexuado, polimorfo, dedicado para e por toda a humanidade.

Bem, viver nunca foi fácil. É no caminho de escolhas e renúncias que muitas dificuldades nos são dadas como aprendizado, existindo duas formas de reagir as adversidades portanto: ou você empaca e remói o percalço que interrompeu sua jornada ou usa o ato negativo como força motriz e choque mental para mudar o rumo e seguir em frente.

E penso também que não será necessário um artista, guru, coach ou influencer (ou seja, lá quem você tem por mentor) que transformado numa espécie de narrador de seu próprio tempo dê um depoimento último, porque não será preciso deslocar ou provocar o público como em um exercício onde este seja convidado a pensar junto sobre o cotidiano para ampliar sua visão de mundo. Ora, ampliar a visão é poder ver além de uma perspectiva pessoal. É saber que existe algo mais do que aquilo que estamos observando no momento. Ampliar sua visão é perceber que há algo mais, além do que seus olhos podem ver e ir em busca do aprendizado. Então, essas percepções poderiam nos levar a investir em um diálogo com a realidade através da cultura (literária, religiosa, artística e midiática em geral), compreendendo-a como linguagem capaz de elaborar percepções sobre temporalidades e lugares, repercutindo relatos sobre identidades e cotidianos diversos, ou seja, uma modalidade discursiva capaz de enredar histórias (E haja imaginação para tantas e novas narrativas).

Ou, como nos diz o filosófo Hume: As ideias são as marcas das impressões dissipadas no fluxo de percepções que constitui a mente humana. Já as impressões mais vívidas, penetram mais violentamente em nosso pensamento em sua primeira aparição à alma, e abrangem as sensações e as paixões. Bem, Hume parece estar sugerindo que “o mundo é tal qual como o percebemos”. Qual o risco de você acreditar nisso? Você poderá aceitar o “podemos idealizar tudo agora” como uma hipótese capaz de mudar toda a sua existência e acreditar que ela poderá ser utópica, otimista e muito recompensadora apenas ignorando os fatos desagradáveis.

Infelizmente tenho dificuldades para acreditar nisso porque quase sempre me dou conta de que o nosso mundo real está petrificado pelo hábito, e já nos acostumamos a falar sobre ele de uma certa forma e pensarmos sempre dentro dos mesmos quadros, onde vemos tudo sempre da mesma maneira e os sentimentos se embotam por sabermos que o que vai ser é igual àquilo que já foi (Olá Eclesiastes!). E aquilo que experimentamos deveria se encaixar em categorias mais racionais. Mas tudo o que podemos conhecer ainda não é a realidade total, aquilo que Kant chama de fenômeno, o objeto na medida em que ele é apresentado, organizado e entendido pelo nosso pensamento[2].

Vivemos em uma época em que belos momentos estão muitas vezes atrás das telas. Nunca será o mesmo que deixar a sua alma capturar o momento e permitir-se engolfar as emoções que se desenrolam. Uma parte da nossa capacidade de mergulhar totalmente foi apreendida e limitada por um dispositivo que nunca nos deixará realmente apreciar a beleza da efemeridade. (O declínio da realidade humana – Lara Mindy)

A minha próxima pergunta é: Viver é sobre crescimento e mudança? E quando parar de acontecer significa que estou apenas sobrevivendo ou meramente existindo sem nenhuma relevância? Viver no fundo do poço e se contentar com uma vida de migalhas é uma questão de escolha? Eu sei, nosso primeiro instinto seria de encolher-se como um rato que subitamente acorda de seus sonhos de roedor e se vê perdido na cidade furiosa em pleno horário do rush. Mas ao contrário, desafiando a simples angústia de sobreviver, todos nós temos a oportunidade de sair desta condição de miséria e procurar o vasto oceano que começa em si mesmo, e que apenas não conseguimos enxergá-lo por estarmos em uma posição desprivilegiada. Por isso rejeito o coitadismo[3] moderno que apenas serve como um antônimo para aqueles que cuidam do próprio destino, porque ele faz você naturalmente depender sempre de outras pessoas ou de fatores externos para que as coisas aconteçam. Em alguns casos, certas atitudes, ou falta delas, podem ser definidas até como preguiçosas.

Já leram a parábola da rã[4]? Uma das interpretações nos diz que podemos entender a garça como a nossa consciência, nos chamando a sair do fundo do poço em direção ao oceano das novas oportunidades e perspectivas, onde parte deste oceano já está dentro de nós, basta que enxerguemos sua beleza obscurecida pelo medo, pelos complexos de inferioridade, pelos traumas do passado etc.

Entretanto, hoje há um grande obstáculo para isto acontecer: Esta geração (e a próxima infelizmente) ainda não conseguiu imaginar um futuro melhor (e também ninguém se preocupou em preparar um). Acham que suas ideias podem corrigir e consertar todos os erros das gerações anteriores e, principalmente, aquilo que não se encaixam mais em seus anseios e idealizações. Por isso mesmo engendram tantas queixas, indignações e ressentimentos para conseguirem submeter todos quanto puderem ao desamparo e desesperança. Afinal, isso não exige coragem de ninguém, apenas a covardia é suficiente (e um perfil em rede sociais). Sua única admoestação é: Desesperem-se mais. Apelam tanto para a esquerda como para a direita, porque, no final, exigem tão pouco da nossa imaginação literária, da nossa política ou da moral, pedindo apenas que desfrutemos da companhia de pessoas cujo medo do futuro se alinha confortavelmente com o seu próprio coitadismo. E não é irônico nós estarmos com medo que nossos jovens desaprendam a ver como nós vemos e diligentemente os ensinamos também?

É bem conhecida a citação do Sócrates no diálogo de Fedro[5], em que ele diz que a escrita atrofiará a memória dos jovens, que já

“não usarão suas memórias; eles confiarão nas externas letras escritas e não se lembrarão por si mesmos”.

E arremata com uma afirmação que poderíamos bem repetir hoje mesmo sobre o Google:

“eles serão ouvintes de muitas coisas e não terão aprendido nada; eles parecerão ser oniscientes e não saberão praticamente nada; eles serão uma companhia cansativa, tendo a aparência da sabedoria sem sua realidade”.

Antes de dizer que os jovens de hoje em dia não estão preparados para o mundo adulto, lembre-se de que eles não precisam entrar em nosso mundo adulto. Eles criarão o mundo deles. Para o qual terão certeza de que seus filhos não estarão preparados também.

Para os cristãos: A. W. Tozer[6] percebeu a muito tempo que é preciso uma guerra, uma eleição, tensões raciais, mudanças climáticas, um exôdo de refugiados ou um surto de criminalidade juvenil para dar suporte ao assunto dos profetas modernos. Não é a Palavra do Senhor, mas a vida descompromissada, o desfrutar do tempo e o pensamento dos comentaristas itinerantes (artista, guru, coach ou influencer) que estabelecem o ritmo e determinam a importância da nossa pregação. O mundo sempre se move primeiro e a igreja vem humildemente depois, tentando lamentavelmente parecer e soar como um modelo razoável e, ao mesmo tempo, manter um testemunho religioso fraco, inserindo um comercial respeitável de vez em quando, com o objetivo de que todos devam aceitar Jesus e ser renascido. O fundamentalismo secularizado é uma coisa horrível, muito horrível, muito pior na minha opinião do que o modernismo honesto ou o ateísmo total. É todo um tipo de heterodoxia do coração que existe junto com a ortodoxia do credo. Seu verdadeiro mestre pode ser descoberto observando quem ele admira e imita.

Os fatos por si só nos mostram que estamos evocando agora uma distopia não para resistir, mas para esconder. Porque estamos mais preocupados com o estilo de vida do que com o futuro, queremos acreditar que um feminismo distópico, representações midiáticas evocando quebras de paradigmas e influenciadores pseudos intelectuais ganhando prêmios são algum tipo de mudança significativa em si mesmo. E ainda temos os grandes eventos de música e cinema para amortizar a quebra de padrões comportamentais e implementar os novos! Yeah! Estamos conseguindo e avançando! Aumenta o som DJ! Com tudo isso acontecendo podemos perceber que já vivemos estes tempos de distopia. Imobilidade, apatia, indiferença. Como o autor bíblico do Eclesiastes nos diz:

“Todas as coisas trazem canseira. O homem não é capaz de descrevê-las; os olhos nunca se saciam de ver, nem os ouvidos de ouvir. O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol.” (Eclesiastes 1, 8-9, NVI).

Então, para encerrar, uma coisa deve ficar bem esclarecida: havendo ou não engarrafamentos, isso não impedirá que o amor verdadeiro siga seu curso. Vá ao encontro dele antes que alguma narrativa moderna de algum artista, guru, coach ou influencer tente transformá-lo em um batráquio preso num poço! Ainda há um amor que tudo crê, tudo suporta, é paciente e que não se ufana!

Que comece 2020!

1- https://analauranahas.com/2013/07/14/acho-que-o-amor-e-a-ausencia-de-engarrafamento/

2- https://guiadoestudante.abril.com.br/especiais/immanuel-kant/#c

3- https://manualdohomemmoderno.com.br/comportamento/complexo-do-chaves-ou-sindrome-do-coitadismo

4- http://blogs.opovo.com.br/artesanatodamente/2014/11/14/parabola-da-ra/

5- https://pt.wikipedia.org/wiki/Fedro_%28di%C3%A1logo%29

6- https://books.google.com.br/books?id=fXgYAgAAQBAJ&dq=today,+it+takes+a+war,+an+election,+racial+tensions+or+an+outbreak+of+juvenile&hl=pt-BR&source=gbs_navlinks_s

Sobre lucaspinduca

I'm part cultural voyeur mixed with a splash of aspiring behavioral scientist and wannabe motivational Christian speaker.
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