(…) Vocês são mortais, não há dúvida, porém o fato de que possam refletir com esse minúsculo cérebro sobre a eternidade ou sobre o passado e que dessa maneira, com o espaço limitado e o tempo limitado que lhes é dado, possam abranger espaço e tempo tão imensos, aí reside o mistério. – Cees Nooteboom.
Em nossa realidade centrada quase que exclusivamente no ser humano, as pessoas se veem como autoridade máxima. Sempre apressadas para reivindicar algo quando não podem desfrutar os direitos que julgam possuir pelo simples fato de serem… humanos. Estamos em um universo que não é mais o da disciplina coercitiva, mas o de uma máquina de estímulos, um sistema de tentações que diz sem parar “veja, isso é magnífico, bom, você gostará”. Por isso, a partir de uma visão utilitarista, somos empurrados para agir sempre de forma a maximizar o bem-estar comum, nos acossam diariamente com packaging, publicidade, séries, filmes, destinos turísticos, música…
Caro leitor, já percebeu como o mundo fala mais alto e ligeiro, como se tentasse encaixar o maior número possível de palavras em um curto intervalo de tempo? É para que sua voz sobressaia as outras e suas ideias se imponham mais facilmente. Embora venha, do excesso de palavras, as promessas do tolo (Eclesiastes 5.3). É neste universo sedutor que encontramos as redes sociais como atraentes estrelas dos sistemas de “empacotamento” de ideias estimulantes. Onde toda narrativa tem se mostrado uma tentativa de construir algo novo e estimulante, a partir de alguma coisa além da verdade que contraria o senso comum de felicidade, ao mesmo tempo que desconstrói fundamentos e princípios sólidos.
Mas é quando a nossa atenção se prende ao mundo a nossa volta que descobrimos: já estamos, e vivemos, em uma época cheia de pós-verdades (fatos objetivos x apelo às emoções), onde a intenção é infundir as coisas por meio de nossas próprias lentes modernas exclusivas, e fazer as coisas parecerem compreensíveis para todos, misturando sonhos, fantasias, memórias, reimaginando o mundo. Tomemos por exemplo o Instagram (nada contra. Sou um usuário do app): não é a vida real e deveria ser, já que estamos preparando uns aos outros (e a nós mesmos) para falhar, removendo todo o ‘real’ de nossos feeds. Este ‘apagamento’ daquilo que é real leva a ressignificação de questões importantes. Por isso percebemos que estamos vivendo um tempo estranho e de muita ansiedade. Muitos de nós estão olhando ao redor e se perguntando “quem somos e o que estamos nos tornando? Ora, sejam bem vindos a hipermodernidade! Hora de acordar e perceber que estamos descontentes, não com o peso das circunstâncias, mas com o peso de nossas expectativas somente.
E haja ansiedade! Gilles Lipovetsky nos explica que tudo começou nos EUA, lá pelos anos 50, quando o capitalismo se entranhou no consumo de massa, e isso transformou os modos de vida. Desde então, falam de fun morality, de como o prazer e sua busca se tornaram legítimos, e a consequência disso é que pouco a pouco essa lógica de sedução e prazer tomou conta de tudo, da educação até a economia nada escapou. Nossos ideais hoje incluem viajar, comprar coisas de marca, nos distrairmos … Esta forma cultural, em que o mercado, a ética individualizante e o espírito do consumismo são erigidos como o modelo cognitivo e normativo da vida social não é de espantar, mas isso não está à altura de uma sociedade, mesmo humanista, que deve também se integrar a outros ideais que não sejam gostar das coisas pela aparência e ser seduzido pelas mercadorias. Se há uma espécie de precoce maturidade e independência neste processo, ainda assim há algo de incapacitante neste homem hiper ou pós-moderno, pois precisam sempre dar uma forma nova a tudo o que conhecem, colocando em um novo contexto. Mas ao rejeitar as regras antigas sem ter um padrão novo minimamente adequado, temos a sensação de estarmos mergulhados em uma vida desregrada, em um tipo de Antinomismo (anti ,contra e nomos , lei), cujas características são sempre as mesmas:
-Subjetividade: o indivíduo busca fazer o que considera certo, independentemente do que está determinado (1Rs. 11.6);
-Individualismo: o indivíduo age autonomamente, por conta própria, buscando para si o que é de seu interesse, sem se importar com as regras coletivas (Fp. 2.4);
-Relativismo: ignora as bases normativas (que diz como devemos agir) de valor que aprovam ou desaprovam os atos morais (Sl. 94.20-21);
-Irracionalismo: leva à ação impulsiva e emotiva, sem que sejam consideradas a consequências (2Sm. 11.2-5).
E se antes pertencíamos a um coletivo de trabalho, de bairro e de religião, e isso fornecia um amparo aos indivíduos que viviam em condições difíceis, dava-lhes uma espécie de segurança interior também. Hoje, apesar de termos muita liberdade, todos podemos mudar de profissão, de parceiros, de religião, de país, a vida privada é livre, entretanto, os indivíduos se tornaram extremamente frágeis psiquicamente, inconformados e insatisfeitos.
E como resultado, bem ruim eu diria, criou-se esta angustiante necessidade moderna de sermos tão interessantes ao ponto de seduzir o outro para receber sua aceitação, validando assim a nossa pretensa relevância.
Há muito vivemos com a voz embarcada, sufocada, por vezes pela família,por outras por conta do trabalhou, e as vezes , muitas vezes por esta sociedade que teimosa mente nos mantém na contramão da “eventual “omissão.
Ao “enfundir as coisas por meio de nossas próprias lentes” ,na maioria dos casos nós juntam como fardos.
Quando tiramos o afeto que tem de mim ou melhor de nós, ou seja , não angústia mais, não retira as energias, não nos deixa com raiva ou medo, estaremos sem culpa .
“… apesar de termos muita liberdade…”
Se ter liberdade e a ausência de oposição, submissão, servidão…
Então sim somos libertos. Fica a dúvida: Como se opor a concepção de mundo, que outrora individualista, hoje tão determinista ?