Ser ou não ser não é mais uma questão.

Esta é uma pergunta profundamente existencial (ou existencialmente profunda) que questiona o existir, como viver com autenticidade, com integridade.

Falamos muito de integridade como sinônimo de honestidade. Íntegro socialmente falando é aquele que não rouba, não mente, não manipula as pessoas. Sim, este sentido é correto. Porém, ser íntegro vai além de ser honesto e cumpridor das regras e leis. Ser íntegro é ser coerente consigo mesmo. Um filme exibido na íntegra é aquele que não tem cortes, que não tem cenas censuradas. O sujeito íntegro é aquele que vive e se apresenta socialmente sem cortes, sem máscaras que escondam parcelas inconvenientes da personalidade. É aquele sujeito que não concorda com alguém para agradar. É o sujeito que defende seus pontos de vista e principalmente age de acordo com a sua forma de pensar e sentir1.

Gosto desse assunto e pareceu-me bem, em certo sentido, pôr a inteligência como causa de tudo. E dentro de mim pensei que, se isso for verdade, a inteligência ordenadora teria de ordenar todas as coisas e dispor cada uma delas da melhor maneira possível; portanto, se alguém quiser descobrir a origem de cada coisa, como tudo é gerado, morre e existe, teria de descobrir também qual seria a melhor condição de ser, de sofrer ou de fazer alguma coisa. Pensando assim, o que o homem não deve considerar a respeito de si próprio e das outras coisas seria nada que não seja perfeito e ótimo; naturalmente, o homem precisará conhecer também o pior. Porque a ciência do melhor e do pior em relação às mesmas coisas são iguais2.

Falando sobre este homem como um animal racional, em Aristóteles, isso significa a capacidade humana de ver longe, enxergar além do que se passa imediatamente. E, inevitavelmente, ter muitas vezes que renunciar um prazer em nome de um prazer maior futuramente; o ser humano é capaz de renúncia em relação ao prazer imediato, e isto se dá pelo uso inteligente da razão. A partir disso temos a capacidade de distinguir o útil e o prejudicial, o bom e o mal, o justo e o injusto. Bem, dizem que é isto o que nos difere dos outros animais, o fato de sermos racionais. Percebemos o mundo da mesma forma que os outros animais, mas não somos escravos das paixões e dos impulsos como os outros. Porque agora munidos de racionalidade, temos constantemente um diálogo entre o desejo e a razão em relação a uma determinada situação, pois decidir é lidar com paixões. Para Platão, o homem é essencialmente alma, sendo essa alma imortal deveria o quanto antes retornar a seu mundo de origem. Já o homem aristotélico é composto de alma e corpo, como os demais seres do mundo, desempenhando a alma deste no papel de forma, mas que não escapa da corrupção. Em Plotino, surge à noção de conhecimento intelectivo presente unicamente na alma (noesis) e as demais funções ficam ao encargo do corpo3:

 “O homem é capaz de manejar seu corpo, adestrá-lo e torná-lo apto de realizar movimentos de uma perfeição admirável; para ele, o corpo é um elemento essencial, pois sem ele não pode alimentar-se, reproduzir-se, aprender, comunicar-se, divertir-se. É mediante ao corpo que o homem é um ser vertical, é um ser no mundo”.

Com o advento do cristianismo, o homem não só se relaciona com a natureza, mas com Deus e com outros homens, sendo que a reflexão antropológica se dá a partir do conhecimento de Deus (teocêntrica). É aí que o Novo Testamento faz com que o objetivo supremo da vida, o amor de Deus, coincida com o fazer a vontade de Deus, com o seguir a Cristo, que concretizou com perfeição aquela vontade. Desse modo, o antigo “intelectualismo” grego é inteiramente subvertido pelo “voluntarismo”: o “querer de Deus” é a lei moral e o “querer o querer de Deus” é a virtude do homem. A boa vontade (o coração puro) torna-se a nova marca do homem moral que agora pode tomar decisões e fazer escolhas morais boas.

Muitos conceitos e definições comportamentais éticos dos cristãos são a base para a existência de pensamentos, filosofias e práticas sociais do nosso tempo. Tentar fugir desta realidade é cair em um devaneio utópico existencialista. Quanto a verdade bíblica ser relativa, eu discordo veementemente. O fato de você poder escolher suas ações e tomar atitudes de acordo com o seu entendimento da realidade não configura a veracidade/veredito final sobre o que quer que seja. Concordo que se não tiver fé (crença) na Bíblia ficará muito difícil crer na existência de um autor da mesma, visto que cristão é o que imita/pratica o modelo de Jesus Cristo.

Quando exponho o fato bíblico não falo de uma das tantas possíveis verdades, porque ela não é meramente um conceito; o verdadeiro cristão deve falar a verdade exposta na Bíblia, produzir ações dignas desta mesma verdade e prospectar/anunciar esta verdade. Para contextualizar ESTA verdade muitas vezes utilizo um conceito anterior a minha época, uma linha de pensamento que remonta um laço antigo com uma realidade que expressa primitivamente os nossos dias, é quando dizem que estou utilizando um pré-conceito. Mas a realidade em que estamos vivendo está assentada sobre muitos destes conceitos antigos, visto que a ética judaico-cristã é base de QUASE todo o pensamento ocidental, inclusive o seu ‘contraponto’, o pensamento ateísta.

Isso nos mostra como a Inteligência deveria agir em função do melhor, ou seja, do Bem, o que implicaria uma dimensão do ser que está além do puramente físico. A Inteligência se tomada sozinha junto com os elementos físicos, não é suficiente para “ligar” e “manter juntas” as coisas: é necessário ganhar outra dimensão que leve a “verdadeira causa” que é justamente aquilo o que a verdadeira inteligência se refere. E esta é a dimensão do inteligível, que se pode ganhar apenas com um tipo de método que leve para além do físico.

Ernst Gombrich, o historiador da arte, escreveu que os modernos haviam transformado em metáforas todo o pensamento mágico dos antigos. Inferno e paraíso deixavam de ser possíveis destinos para representar estados mentais4. Como não existe metáfora perfeita, o que importa é que ela forneça a base para a compreensão de verdades mais profundas e um ponto de apoio para que possamos agarrar, nos apossar destas verdades em nossas vidas. Infelizmente o interesse moderno em fazer a realidade exprimir o seu desejo fez aparecer uma ideia de religião como misticismo ou mito circunscrito metafisicamente a mera existência humana.

De acordo com Aristóteles, para decidir, há quatro poderes da alma que exercem influência ao longo do processo: percepção, emoção, desejo e razão5. Toda decisão depende da percepção sensível dos cinco sentidos do que se passa; decidir é decidir sempre em um determinado contexto. É preciso perceber qual a situação em que nos encontramos. A percepção de uma situação gera, automaticamente, uma emoção. Ao perceber que alguma coisa é real, uma paixão surge. Ligada à emoção, surge imediatamente o desejo – se sinto medo, logo em seguida terei o desejo de me afastar do que me causa o medo, da mesma forma que se me sentir feliz vou querer me aproximar daquilo que me alegra. Esses fenômenos acontecem imediatamente a partir da percepção. Então, somos resultado do que vivemos; a alma, a inteligência e o caráter, são resultados da nossa história, da construção diária de nós mesmos. Somos resultado das decisões que tomamos, das emoções que sentimos. Somos resultado da nossa experiência mental, o modo como pensamos e agimos em relação às situações é construído ao longo do tempo.

Ora, se a alma (a imago dei) humana é ao mesmo tempo centro e circunferência da psique (mente) o existir limita o ser a vida de Deus. Entretanto, estamos satisfeitos com a maneira que estamos vivendo, em sermos capitães do nosso próprio navio, desde que experimentemos uma sensação de bem-estar enquanto o pensamento e sentimento trabalharem juntos. Mas e quando acontece uma falha na “matrix”?

Parte da minha geração, nascida nos anos 70 e criada por pais que já não escondiam dos filhos seus medos e dúvidas, que brigavam e até se separavam, foi poupada de qualquer educação religiosa. À mesa de jantar entrava o sexo e saía Deus. Não se trata exatamente de uma geração de ateus, pois ser ateu implica diversas responsabilidades e reflexões – é uma geração que simplesmente não precisou pensar no assunto. Praticar o bem e ter atitudes éticas seria natural para construir uma sociedade melhor para todos e, na hora H, cada um em âmbito privado resolveria do seu jeito o inevitável da vida. O problema é que, na hora H, meus mentores intelectuais me deixaram na mão. Você não compra um novo significado para a vida em três vezes no cartão e recebe em casa após cinco dias via Sedex. E pensar como eu amei os céticos e os materialistas. Algo havia dado errado nessa história toda6.

Freud dizia: “Consideremos o modo em que os seres humanos em geral se comportam afetivamente entre si. Segundo a famosa comparação de Schopenhauer sobre os ouriços que se congelavam, nenhum suporta uma aproximação demasiado íntima dos outros”. A ideia que esta parábola (dos ouriços) quer transmitir é que quanto mais próxima for a relação entre dois seres, mais provável será que possam causar dano um ao outro, ao mesmo tempo em que quanto mais distante for sua relação, tão mais provável será que morram de frio (O que necessariamente não exime eu e você de nos aproximarmos “sacrificialmente” para amar o outro, seja ele quem for).

Esta impermanência dos valores e a solubilidade da moral na sociedade dita pós-moderna tem feito os relacionamentos adquirirem uma fluidez impressionante. Quase anulam o aprendizado passado e seus significados dentro das novas normas sociais. Hoje, sair de um relacionamento heterossexual e começar um homoafetivo é a coisa mais normal do mundo. “Hoje, como as pessoas não conseguem nem ser nem ter, o grande objetivo de vida se tornou parecer”7. 

Em meio a tanto relativismo, tornou-se necessário fixar um ponto de partida, um padrão de comparação, para começar o processo de fazer e combinar refazendo o que finalmente será incorporado na imagem final. O Ser aqui não pode iniciar a partir do zero, mas ele pode criticar seus precursores, o padrão anterior, e remodelá-los sobre as tradições que haviam herdado e do qual faziam parte. Desta maneira, parece-me que esquecemos a própria conotação que Deus dá de si mesmo a Moisés, “Eu sou Aquele-que-É”, que deve ser interpretada, em certo sentido, como a chave para se entender ontologicamente a doutrina da criação: Deus é o Ser por sua própria essência e a criação é uma participação no Ser, ou seja, Deus é o Ser e as coisas criadas não são Ser, mas contêm o Ser (que receberam por participação).

Como o cristianismo não é o fim de um debate filosófico, mas consequência de um milagre divino inacreditável e totalmente inesperado é provável que os ecos desse milagre, embora abafado se corrompidos, não passem de impressões digitais suficientes para que se revele o Deus verdadeiro a partir deles. Não desejando dar por encerrado este assunto, pois é extenso e mais profundo do que foi “rascunhado” aqui, finalizo com o pensamento de Filon, onde a ética do Ser é apresentada como um itinerário para Deus, uma: “migração (análoga a do pai Abraão da terra da Caldéia, Genesis capítulos 15-23), que nos leva a entrar de novo em nós mesmos, depois de deixar todo interesse pelo mundo externo. Uma vez descoberta nossa nulidade e o fato de que nós mesmos somos um dom de Deus, é preciso remontar até Ele e a Ele nos ligarmos”.8 E mais ainda:

  1. É meu estado de ânimo que Moisés, o perscrutador, inscreveu sobre o meu memorial. Ele, com efeito, diz: “Aproximando-se Abraão disse: Agora cheguei a falar com meu Senhor. Eu que sou terra e pó” (Gn 18.23-27), uma vez que o momento exato para a criatura encontrar seu Criador chega quando ela reconheceu sua própria nulidade.

(…)

  1. É certamente necessário que a virtude do homem caminhe sobre a terra, mas também que chegue até o céu, a fim de que lá, nutrida pela incorruptibilidade, possa permanecer incólume para sempre.

Se prestarmos atenção à psicologia dos personagens no livro do Gênesis notaremos que a personalidade de Abraão de modo nenhum está “perdida”, mas muito mais viva e determinada. Filon une aqui, estreitamente, o reconhecimento dos próprios limites com a consciência da dignidade humana, e nos ensina que o homem é exatamente parente e íntimo de Deus. Ou deveria crer e viver isso. Seria uma escolha muito inteligente não acham?

1- http://obviousmag.org/cinema_pensante/2015/09/ser-ou-nao-ser-eis-a-questao.html#ixzz4Ir0X5yvh

2- Reale, Giovanni. Historia da filosofia: patrística e escolástica [tradução Ivo Storniolo]. São Paulo: Paulus, 2003.

3- RAMPAZZO, Lino. Antropologia: religiões e valores cristãos. São Paulo: Loyola, 1996. P. 32s.

4- https://en.wikipedia.org/wiki/Ernst_Gombrich

5- ARISTÓTELES. Retórica. Imprensa Nacional- Casa da Moeda. 2005.

6- http://piaui.folha.uol.com.br/materia/ja-nao-era-mais-terca-feira-mas-tambem-nao-era-quarta/

7- https://medium.com/@lucaspinduca/and-christian-morals-became-also-liquid-cb65ecd176ec#.9bew9rqb0

8- Idem ao 2.

Sobre lucaspinduca

I'm part cultural voyeur mixed with a splash of aspiring behavioral scientist and wannabe motivational Christian speaker.
Esse post foi publicado em comportamento, Cristianismo e marcado , , , , , , , , , . Guardar link permanente.

Uma resposta para Ser ou não ser não é mais uma questão.

  1. Pingback: Devocionais para não devotos XXX | Oficina do Pinduca

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.